15, NOV 2016  Manoel de Almeida Henrique

Balanço da Petrobras e o diabo

A notícia nos jornais do dia 10/11/16 de que a Petrobras divulgou o prejuízo de R$ 16,458 bilhões no 3º trimestre de 2016 e justificou o resultado como sendo efeito do impacto pela reavaliação de ativos da companhia despertou em mim, naquele dia, o hábito de analisar balanços publicados obrigatoriamente nos jornais. De posse da notícia e através da internet, localizei o relatório público Formulário de Referência 2015 da Petrobras, arquivado na Comissão de Valores Mobiliários – CVM em 28/05/2016.

O instinto de auditor e tributarista nesse momento de análise sumária é desafiado, ainda que não existam disponíveis maiores informações ou que nas informações apontadas possam existir a possibilidade de erro humano ou fraude. Nas minhas provocações em cursos e palestras sobre os cuidados com erros e fraudes contábeis, aproveito para adaptar um provérbio popular para dizer que no imaginário submundo da contabilidade e dos tributos reina nas sombras um diabo especializado em contabilidade e tributos e, no seu inferno, para quem dele se socorre com consultas para o bem ou para o mal, antes de entrar, avista a inscrição no seu portal: "o diabo ajuda a fazer, mas não ajuda a esconder".

Não sabemos se houve consulta ao diabo imaginário ou se foi ele quem incitou o responsável pela informação para ocasionar confusão, mas as sutilezas das informações contábeis existentes no relatório Formulário de Referência 2015 supradito fazem emergir incertezas sobre fatos relacionados a três importantes temas vinculados entre si e que formam um complexo enigma contábil, quais sejam, Sociedade de Propósito Específico - SPE, Arrendamento e Aluguel de bens. Os três temas são polêmicos e sobre eles, pode pesar risco tributário com valores bilionários às empresas e às administrações tributárias estatais relacionadas aos impostos ICMS e ISS.

O que ficou exposto, seja pelo conselho direto do diabo ou por sua indução à omissão de esclarecimento e que gera confusão, é o vínculo destes temas, mas de forma desconexa, e ele se inicia na página 209 do citado Formulário de Referência. Nele constam diversos itens de Ativos Imobilizados registrados na condição de propriedade como “Arrendada” e chamamos a atenção, como exemplo, para a unidade industrial denominada Hidrotratamento Nafta de Coque localizada no município de São José dos Campos-SP e a sigla que acompanha a descrição do ativo imobilizado intitulada “CDMPI” e depois, na página 526, relacionada ao item 16.2 - Informações sobre as transações com partes relacionadas, em especial, a citação da empresa Companhia de Desenvolvimento e Modernização de Plantas Industriais - “CDMPI” e a informação da relação com o emissor: Sociedade de Propósito Específico (SPE) e também o seu objeto, contrato de aluguel de equipamentos.

Essa situação em que no rol dos bens do ativo imobilizado de uma empresa um bem encontra-se na condição de propriedade como “arrendado”, atrelado às siglas do suposto proprietário (CDMPI), e na outra esse proprietário é apresentado como “locador” (CDMPI), no mínimo, para um auditor, gera desconforto face à indução de incerteza na informação, agravando-se o quadro pelo fato de a empresa locadora ou arrendadora ser um Sociedade de Propósito Específico-SPE.

Independentemente da condição do bem, arrendado ou locado, é importante registrar que agiu bem a Petrobras quando reconheceu no seu Ativo Imobilizado os bens de terceiros e assim atendeu ao inciso IV da Lei 6.404/76 e ao Pronunciamento Técnico CPC 27 Ativo Imobilizado, uma vez que efetivamente ocorreu para ela a transferência dos benefícios, os riscos e o controle desses bens (Hidrotratamento Nafta de Coque).

Porém, assim como a situação diabólica é caracterizada por ser difícil de explicar, a falta de nexo relacionada ao fato de o bem constar no ativo imobilizado da Petrobras na condição de “arrendado” e a empresa que seria a arrendadora constar como uma Sociedade de Propósito Específico - SPE e o seu objeto ser aluguel de equipamentos, CNAE 77.39-0-99, inclusive como consta no site da Receita Federal, no mínimo é natural emergir a dúvida: Afinal, o que está ocorrendo com esta unidade industrial de S.J. dos Campos é aluguel ou arrendamento para a Petrobras?

Essa resposta, seja ela aluguel ou arrendamento é importante, pois a partir dela será possível explorar os efeitos tributários, em especial do ICMS e do ISS.

Se for aluguel de equipamentos, a Lei Complementar nº 116/03 não contempla a locação de bens móveis, pois a Súmula Vinculante nº 31 do Supremo Tribunal Federal STF, publicada em fevereiro de 2010 declarou ser inconstitucional a incidência do ISS sobre operações de locação de bens móveis, afastando a necessidade de emissão de nota fiscal de prestação de serviço e se for locação de imóvel a operação não é fato gerador do ISS. Ou seja, se for locação de bem móvel ou imóvel não se pagará um tostão a título de ISS para o município.

Entretanto, se for arrendamento o contexto fica mais complicado, em face de possibilidade de tributação pelo ICMS, conforme previsto no inciso VIII do art. 3º da LC 87/96. Não só isso, a atividade de arrendamento está subordinada as exigências da Lei 6.099/74, alterada pela Lei 7.132/83 e a Resolução do Banco Central de nº 2.309/96, com destaque para o artigo 4º desta Resolução o qual determina à empresa que deverá constar obrigatoriamente de sua denominação social a expressão "Arrendamento Mercantil" e neste caso, não localizamos, conforme consta no site da Receita Federal, que a empresa “CDMPI” possua em sua denominação a expressão “Arrendamento Mercantil”, em que pese constar no Formulário de Referência 2015 da Petrobras como possuidora de bem arrendado.

Para contextualizar a importância do fato registramos que na REVAP de São José dos Campos os valores das operações relacionadas ao assunto aqui tratado são de aproximadamente R$ 9 bilhões, conforme notícias do Jornal O Estado de SP de 15/02/2015.

Sob a luz do ICMS, seja a operação locação de equipamentos ou arrendamento, é importante dizer que se for locação a operação estará ao abrigo da não incidência em razão do disposto no inciso IX do artigo 7º do RICMS/SP, mas desde que os referidos bens voltem ao estabelecimento de origem, e se for arrendamento, o limite da incidência do ICMS estará no inciso VIII do artigo 3º da LC 87/96, ou seja somente quando ocorrer a venda do bem arrendado ao arrendatário.

Sobre o ICMS-SP também é oportuno relacionar ao caso a possibilidade de descaracterização de contrato de locação ou mesmo de arrendamento diante do que consta da Decisão Normativa CAT 3/2000.

A situação exige cautela cirúrgica sob o ponto de vista da competência tributária estadual e/ou municipal quando relacionamos a informação da CDMPI com a Petrobras e o seu objeto qual seja, Sociedade de Propósito Específico (SPE), conforme consta na página 526 do Formulário de Referência 2015 da Petrobras.

No caso, os contratos relacionados com as SPEs são denominados de EPC, cujas letras significam "Engineering, Procurement and Construction” e pressupõem que o vendedor de um equipamento ou unidade industrial estabelecerá no contrato um preço global único se obrigando a projetar, a construir edificações, a adquirir equipamentos, a efetuar montagens e ao final realizar treinamento sobre como operar o equipamento. Nesse sentido reside a complexidade tributária, pois não existe tanto no ICMS como ISS previsão de fato gerador para esta modalidade conjugada de fornecimento de bens e serviços. Este modelo de contrato, EPC, muito utilizado na Europa, é perfeitamente ajustado à legislação contratual e tributária naquela região onde predomina somente o IVA como imposto que incide sobre o consumo, diferentemente do Brasil, seja sob o ponto de vista contratual ou tributário, que possui o ICMS dos estados e o ISS dos municípios. Tudo isso é começa a ficar relevante se levarmos em consideração que desde o fim da década de 1990, já foram criadas pelo menos 24 SPEs no nosso país, com investimentos de R$ 59 bilhões (fonte jornal O Globo 14/01/2015).

Retornando ao escritório do diabo especializado, fico imaginando os alertas que ele deve fazer aos que o procuram para tratar sobre SPE e EPC no Brasil. Como ele ajuda a fazer, mas não ajuda a esconder, no mínimo ele dividirá seus alertas de riscos tributários em dois momentos cruciais destes contratos: um no período até antes da entrega do bem (projeto, construção, aquisição, montagem e treinamento) e o outro, depois da entrega do bem quando se inicia a cobrança pela utilização do bem (aluguel ou arrendamento).

O lado positivo dessa estória é que esta crítica às informações contábeis da Petrobras e a ficção do diabo especialista poderiam ser bem aproveitadas nesse momento de crise do nosso país. Os nossos administradores governamentais tributários estaduais e municipais poderiam ser mais sensíveis e atentos aos sérios riscos tributários para os já combalidos erários públicos dos Estados e Municípios, pois muito imposto com certeza deixou e deixa de ser arrecadado por conta dos contratos EPCs, os nossos Tribunais de Contas poderiam denunciar não só eventuais desvios de verbas, mas também as suspeitas de sonegação de tributos nas obras de infraestrutura realizadas através de contratos de EPCs, os nossos Contadores poderiam ser mais cautelosos, pois existem riscos de serem responsabilizados administrativamente e criminalmente por abuso de forma ou ausência de propósito nestes contratos, os nossos políticos poderiam enxergar na estória acima a necessidade de uma reforma tributária e os administradores das empresas serem mais atentos, pois os riscos de penalidades fiscais às empresas e as criminais que podem ser imputadas a todos os responsáveis é uma possibilidade diante de um questionamento fiscal.

Ou seja, independentemente de o cenário ser interessante e um dos maiores perdedores ser o país, resta a pergunta: Afinal, os bens informados pela contabilidade da Petrobras estão arrendados ou alugados?

lang: pt_BR