A Maçã, o Fisco e a Empresa Inidônea
A legislação sobre a declaração de inidoneidade fiscal de uma empresa utilizada pelo Fisco Estadual Paulista para combater a criação de créditos espúrios de ICMS pode ser considerada uma versão tributária adaptada da desconsideração da personalidade jurídica prevista no artigo 50 do atual Código Civil. Tanto em um caso como no outro o objetivo é combater fraudes, com a diferença que no segundo caso a lei prevê a necessidade de autorização judicial para a cassação de funcionamento ou dissolução da pessoa jurídica.
Sobre o enfrentamento desse câncer tributário que é o documento fiscal inidôneo, é relevante, louvável e merecedor de elogios o laborioso trabalho do Fisco Paulista que ao longo das últimas duas décadas teve a virtude de preservar o Erário e ao mesmo tempo colaborar para a justiça fiscal.
Lamentavelmente, atualmente, através de nossa atuação com consultor tributário e mesmo quando ao final de nossa estada como gestor na Secretaria da Fazenda do Estado, que esse mesmo trabalho complexo vêm causando causando sérios prejuízos ao próprio Erário em razão da banalização silenciosa que vem ocorrendo na elaboração de declaração de inidoneidade fiscal ou inexistência de empresas de documentos fiscais considerados inidôneos, na medida em que as perdas em demandas judiciais que constatam vícios incontornáveis nos relatórios fiscais de inidoneidade e consequente improcedência dos Autos de Infração decorrentes destes condenam o erário a pagamentos dos valores de sucumbência.
Também é digno de registro os prejuízos para os contribuintes de boa-fé, haja vista que estes autos de infração contra os destinatários daqueles documentos fiscais considerados inidôneos e cujos emitentes estavam em situação regular perante o fisco na época das transações comerciais são ordinariamente mantidos na fase de julgamento administrativo, independentemente além de tudo que os autuados venham a argumentar em relação aos vícios dos procedimentos processuais que resultaram nestas autuações, o que acaba por gerar um elevado grau de insegurança e risco para as empresas onde possam existir escriturados documentos fiscais considerados inidôneos.
Mesmo após a constatação destes autos de infração serem considerados improcedentes na esfera judicial, não se tem notícia da responsabilização de servidores públicos, fato só explicável pelo temor de se quebrar tabus corporativos arraigados que exigem a necessidade dos gestores públicos reverem os trabalhos finalizados e também pelos contribuintes que possuem receio de represálias diante do medo de solicitar providências em relação ao abuso de poder.
Por conta disso, a correção de rumo das ações fiscais é necessária e a Administração Tributária precisa ser ágil e certeira o que, por analogia sobre essas necessidades, nos remete à lenda de um herói do século XV, Guilherme Tell, que como castigo teve o desafio de, à longa distância, acertar com uma flecha uma maçã colocada sobre a cabeça do seu querido filho e, caso desistisse do desafio, seria ele, o herói, e o seu filho condenados à morte. Ao final o herói, um arqueiro especialista, depois de muita concentração e mira disparou a flecha que de forma veloz e certeira atravessou a maçã sem encostar em um fio de cabelo do seu querido filho, vencendo assim o desafio imposto como penalidade pelo governante da região.
Essa estória serve como metáfora para ilustrar os dias de hoje na qual no atual cenário tributário milhares de empresas estão sendo autuadas em bilhões de reais pelo Fisco estadual por receberem mercadorias ou por se creditarem do ICMS provenientes de empresas consideradas por este como inidôneas.
Considerando a pessoa jurídica inidônea e os responsáveis pela sua criação, assim como aqueles que de má-fé se aproveitam de créditos espúrios de ICMS como a maçã que deve ser alcançada de forma certeira e ágil, o Fisco, por sua vez, pode ser simbolizado pelo nosso herói Guilherme Tell, sendo o seu filho aqui retratado pelas pessoas jurídicas de boa-fé destinatárias dos documentos fiscais inidôneos.
Face ao atual universo virtual tributário que possibilita a uma pessoa a emissão de uma nota fiscal eletrônica de um contribuinte de qualquer estado para outro contribuinte de qualquer estado estando apenas recostado em uma rede de descanso em uma árvore do Amazonas, o Fisco deve ser ágil, hábil e competente para impedir os estragos causados pelas fraudes estruturadas dos documentos fiscais eletrônicos.
A flecha do nosso herói, o Fisco, como deve ser em uma metáfora, corresponde à agilidade dos processos investigativos, completos e convincentes, com autos de infrações lavrados consistentemente e julgamentos justos e imunes ao corporativismo, o que significa que o objetivo da flecha tributária é atingir de forma certeira a maçã idealizada como a empresa inidônea e seus responsáveis e também aqueles que agiram em conluio e se beneficiaram com essa fraude.
Essa precisão cirúrgica do Fisco deve ocorrer, para não ferir, inclusive de morte, o contribuinte onde se encontra lançado o documento fiscal considerado inidôneo, o que em sentido figurativo é o contribuinte de boa-fé, caracterizado pelo filho do herói. Esse bom contribuinte é aquele que adotou cautelas com seus fornecedores como ser detentor do comprovante do Sintegra da empresa inidônea demonstrando ela estar ativa na época de emissão dos documentos fiscais, comprovantes de pagamentos das faturas, a efetiva entrada e saída mercadorias, escrituração fiscal e contábil de todos os documentos relacionados, contratos, conhecimentos de transportes, controles de pesagem e outros.
Esse emblemático desafio simbólico é um tema relevante para as atuais Administrações Tributárias, a sociedade empresarial e o judiciário, sendo que o tema não se restringe ao ICMS, mas a todos os demais tributos de natureza não cumulativa, como PIS, COFINS e IPI.
Conforme informações disponibilizadas no portal do TIT em 2017, o estoque do contencioso administrativo tributário estava próximo em R$ 120 bi e considerando que a média dos autos de infrações relativos a crédito indevido de inidôneo é de 25%, temos que aproximadamente R$ 30 bi, são os supostos valores sonegados, valores esses suficientes, em sendo confirmados, para construção de muitas escolas, universidades, hospitais e estradas, mas que em caso de não serem confirmados e de o contribuinte pleitear o judiciário e este reformar as decisões administrativas, o Erário poderá sofrer e sangrar em recursos com a sucumbência do processo em que foi derrotado, o que no caso pode representar saída de alguns bilhões de reais do Erário, de forma legal, direcionados às empresas autuadas e ou aos escritórios de advocacia que atuaram no caso, isso sem contar o prejuízo com os recursos desperdiçados pelo uso nada eficiente da máquina da fiscalização.
Esse mal do documento inidôneo não aflinge tão somente o Brasil, mas também todos os países que adotam esse modelo de tributação não cumulativa, padecendo inclusive os modernos países da Comunidade Econômica Europeia que buscam há anos na harmonização do IVA formas de enfrentar essa situação no âmbito de operações comerciais entre os seus países membros.
Regra geral, o fisco nacional, em especial, o estadual paulista, considera inidônea a empresa que não é localizada no local onde diz se encontrar em conformidade com o declarado e inscrito no cadastro de contribuintes do estado, assim como seus sócios nos termos do artigo 30 do RICMS-SP (Aprovado pelo Decreto 45.490/00) e emite ou continua emitindo notas fiscais; a apuração da existência ou não desta empresa, se esta funcionou ou não e durante qual período, a demostração do rol de testemunhas entrevistadas pelo fisco, pesquisas de buscas, e diligências que deverão constar no processo de declaração de inidoneidade dos documentos fiscais emitidos por esta ou na declaração de sua inexistência a partir de um determinado período ou desde a sua abertura, são estas informações que resultarão no processo de inidoneidade que embasará os autos de infração que comentamos aqui e que representarão verdadeiro abuso de poder se as verificações das quais resultaram não forem realizadas com perfeição e, igualmente, demonstradas claramente e integralmente na instrução destes autos sempre que os autuados assim solicitarem no exercício de seu amplo direito de defesa e também se os órgão julgadores não adotarem os mesmo princípios, obviamente.
Para ganhar essa novo tipo de Guerra Fiscal relacionada a fraude dos créditos fiscais inidôneos de ICMS, o Fisco, incorporado no nosso herói Guilherme Tell, deve ser ágil e certeiro sob o ponto de vista técnico, legal e do princípio da boa-fé, quando se inicia a fase da investigação fiscal que culmina com o denominado Relatório de Inidoneidade, previsto na Portaria CAT 95/2006, na sequência, quando da lavratura do auto de infração e, por último, na fase do contencioso administrativo.
Avançando sobre a nossa estória tropológica, de tanto ferir o filho e não acertar a maçã, aqui o filho caracterizado pelas inúmeras empresas que buscaram o remédio do judiciário, foi editada a Súmula 509 do STJ, que teve como solução curativa a criação do contribuinte de boa-fé, porém desde que sob determinadas condições como ser detentor do comprovante do Sintegra da empresa inidônea que demonstre ela estar ativa na época de emissão dos documentos fiscais, comprovantes de pagamentos das faturas, a efetiva entrega da mercadoria, escrituração fiscal e contábil de todos os documentos relacionados, possíveis contratos, conhecimentos de transportes, controles de pesagem etc.
Com isso, a saída para o nosso herói, o Fisco, é antes de arremessar a flecha rumo ao documento inidôneo, sendo esse objeto figurado no auto de infração, é realizar duas importantes e fatais ações, a primeira; possuir boa qualidade de investigação na busca da verdade fiscal e do fato gerador do imposto, assim como os efetivos responsáveis pela fraude, com provas contundentes, depoimentos, entrevistas e qualificação de pessoas, nos termos do artigo 135 do CTN e o § 2º do artigo 17 e artigo 40 da Portaria CAT 95/06, sempre tendo em mente a máxima que se existe algo que deixa rastro é o dinheiro e, segunda; ser criterioso e justo na apuração da possível boa-fé dos destinatários dos documentos fiscais considerados inidôneos, nos termos do artigo 10 da Portaria CAT 115/2014.
Todo esse cuidado deve ser observado, pois é conveniente, ainda que não obrigatório, que o Fisco mantenha certa aderência do seu processo de Inidoneidade ao processo de desconsideração da personalidade jurídica, previsto no artigo 50 do novo Código Civil, é recomendável e importante como no requisito do judiciário que antes da decretação seja identificado o efetivo responsável pelo abuso de forma e também pela fraude, o que significa dizer que o Fisco, considerando o princípio da moralidade administrativa, não deve autuar tão somente de forma imoderada e cômoda o localizável destinatário do documento inidôneo, há que se ter o esforço de buscar responsabilizar o efetivo emitente dos documentos fiscais inidôneos e colecionar provas, em sendo o caso, do conluio dos destinatários desses.
O motivo da preocupação do ambiente corporativo empresarial é que nos últimos anos a crise que devastou nosso país resultou na morte de milhares de empresas, sendo que muitos dos seus proprietários, fugindo de credores, simplesmente abandonaram suas empresas, até mudando seu domicilio residencial de estado e de país e isso não pode significar fraude, no máximo, poderíamos considerar uma inadimplência, o que demonstra mais, que o Fisco, para preservar o Erário, deve ficar atento aos contribuintes costumeiramente irregulares, devedores, e não esperar acontecerem as simulações de existência de empresas com emissão de documentos irregulares para, depois de às vezes vários anos, agir e declarar tais contribuintes inidôneos retroativamente, com apuração superficial dos fatos, causando verdadeiro estrago em empresas destinatárias de tais documentos fiscais que, infelizmente, quase sempre confiaram nos dados cadastrais disponibilizados pelo próprio fisco quando transacionaram seus negócios confiando também que aquelas empresas consideradas posteriormente inidôneas, uma vez que estava autorizadas a emitirem regularmente sua documentação fiscal, consequentemente também estavam em situação tributária regular quando realizaram suas operações comerciais.
Nossa expectativa, como em todos os nossos texto, é sempre positiva; torcemos para que o nosso herói real, o Fisco, vença esse desafio ao ponto de ser certeiro cada vez mais em atingir a maçã tributária do crédito fiscal inidôneo, seja ele Federal ou Estadual e evitando sangrar empresas inocentes sobre as quais foram colocadas essas maçãs podres de forma involuntária; através de uma postura destemida do poder público, nossa estória poderá ter um final feliz para as empresas de boa-fé e também para o herói e toda a sociedade que vive sério momento de carência de recursos públicos e de fé na eficiência do Fisco.